A maioria dos habitantes do bairro naqueles distantes anos 1960 tinha mais ou menos o mesmo padrão de vida. Mas não reclamavam muito não. Viviam a vida com muita luta em busca da sobrevivência, mas com alegria.
Certa vez fui na farmácia do bairro (não me lembro se tinha mais de uma). O proprietário morava ali, na parte de cima. Era um sujeito de uns quarenta anos, levemente acima do peso, com cara de poucos amigos. A farmácia era um lugar bonito e a casa era um palácio - com jardim - se comparado à média do bairro. Ele era um dos poucos que tinha carro naquelas redondezas. Provavelmente um Aero Willys, versão Itamaraty, preto de 1966. Bem, poderia ser também um Simca Chambord, não tenho certeza. O fato é que o conjunto farmácia, casa, carro o tornavam o rico do bairro.
Tudo bem. Deve ter feito por merecer e era respeitado como um "doutor".
Um dia fui ali comprar um remédio para minha saudosa mãe. Provavelmente uma aspirina ou um Heparema para o fígado. O dinheiro era contadíssimo e na maioria das vezes não dava para comprar remédios. Só em último caso e com muito sacrifício.
Pois aquele dia ficou registrado em minha memória - de menino de nove anos - por um motivo inusitado: foi a primeira vez que vi alguém reclamando com ênfase da vida, da economia, das coisas caras, do pouco dinheiro disponível. Era o dono da farmácia.
Me lembrei desse capítulo de minha vida quando li a crônica abaixo do Luis Fernando Veríssimo (sobretudo a primeira parte) e liguei com as imagens transmitidas no Jornal Nacional de "panelaços" contra o governo vindas de bairros como Leblon e Higienópolis.
É bem capaz de que no distante Cosmos (faz décadas que não vou lá) as coisas estarem melhores que nos ricos bairros citados. Pelo menos não vi transmissão ao vivo de panelaços de lá.
Broadway, New York |
"Mas que estranha potência é esse Brasil, que pode mandar tantos dos seus cidadãos a Nova York, quando as notícias que se tem são de privação econômica e panelaços?
A temporada teatral de 2014/2015 na Broadway foi a melhor de todos os tempos, com o público lotando teatros, principalmente para ver musicais, como nunca. A maior parte do público foi de turistas e, entre os turistas estrangeiros, a maior parte foi de ingleses e, em segundo lugar — sério, deu no “New York Times” —, brasileiros. As duas estatísticas intrigam. Quase todos os grandes sucessos da Broadway têm versões inglesas e ninguém precisa sair de Londres para vê-los. Em vez de terem que ir à Broadway, a Broadway vai até eles, geralmente em produções comparáveis, em qualidade, às americanas. Mas a Inglaterra é uma das potências econômicas do mundo, não surpreende que tantos ingleses cruzem o Atlântico só para poderem dizer que viram a versão original dos espetáculos. Mas que estranha potência é esse Brasil, devem se perguntar os produtores americanos ao contabilizar seus lucros, que pode mandar tantos dos seus cidadãos a Nova York para ver musicais, quando as notícias que se tem de lá são de privação econômica e panelaços contra o governo? Há uma discrepância aí, em algum lugar, devem pensar os produtores. Mas que continuem vindo os brasileiros e nos trazendo seus dólares, saiam de onde saírem.
O fato é que hoje não são só as estatísticas que representam pouco, há uma crise de representatividade
Brasileiros enchendo teatros em Nova York significariam que o Brasil vai muito bem. Mas isto se qualquer coisa significasse alguma coisa."
Luis Fernando Verissimo |
2 comentários:
Bom demais, como sempre é!!!
Rapaz, uma viagem e tanto! Do subúrbio carioca nos anos sessenta até a Broadway dos dias atuais em Nova Yorque! E dando o recado político e social!
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