Você é um marciano recém-chegado? Descubra aqui como separar o joio do trigo – ou entender o que é verdade e o que é só interesse no calor da temporada eleitoral
por Nirlando Beirão — publicado 28/09/2014
Alternância do poder
• Você passa a defendê-la com convicção religiosa, quando o partido do qual é inimigo permanece no poder, ao longo de reeleições sucessivas, ainda que avalizadas democraticamente pelo voto. O primeiro passo é atacar a reeleição, instituída, aliás, criada de uma maneira bem marota pelo ex-presidente Fernando Henrique , na esteira do projeto de 20 anos de poder do PSDB e à base da compra de votos no Parlamento. Um golpe constitucional sem nenhuma sutileza democrática a beneficiar o mandatário em exercício, o qual, por mera coincidência, você apoia. Alternância só é necessária quando se está fora do poder. Caso contrário, atrapalha o aperfeiçoamento da democracia. Em São Paulo, ela é especialmente execrada. Os paulistas preferem perpetuar um mesmo grupo político, enquanto bradam contra o risco de uma ditadura em nível federal.
Aparelhamento do Estado
• Quem aparelha o Estado são os adversários. Duvida? Basta ler jornais e revistas, sempre muito zelosos em fiscalizar os adversários, ainda que só a eles, e acusar o partido no poder, desde que não seja o de sua preferência, de “aparelhar o Estado”. Isso significa, basicamente, o seguinte: o partido no poder nomeia para os cargos de confiança pessoas... de sua confiança. Você reclama, iracundo: o Estado faz a festa da “companheirada”. A imprensa partidariamente engajada trata de denunciar a “farra das nomeações”. Dá para imaginar a perplexidade do leitor: o que queriam os jornalões? Que o partido no poder nomeasse adversários?
A vigilância ética é de mão única: se um presidente da República simpático a você nomeia para um importante cargo na área de energia um genro, não é por nada, seus maldosos, apenas uma coincidência. Quando o partido que você apoia aparelha o Estado com a sua companheirada, tenha certeza: os apadrinhados são gente de bem, de notório saber e reputação ilibada. Se aquele diretor da estatal nomeado por você ou pelos seus for pego mais tarde com a mão na botija, é um caso de cooptação estimulado pelo clima corrupto instaurado por seus adversários.
Bolivariano
• Se você se interessa pela sorte dos pobres, excluídos e vítimas de discriminação, a ponto de criar programas sociais compensatórios de emergência, é bolivariano. Se a política externa que você defende não se rebaixa aos ditames da Casa Branca, busca parcerias com nações fora da órbita imperial do dólar e do euro e chega ao cúmulo de lançar as bases de um FMI dos emergentes, trata-se de “ilusão bolivariana”. Bolivariano é o neocomunista. O comunismo morreu, mas o anticomunismo continua a gerar bons negócios. Embora o termo seja démodé, um bolivariano pode ser chamado de populista, na falta de termo melhor. Antônimo: Racionais. São os almofadinhas da Escola de Chicago e da PUC-Rio que não ligam para a sorte da maioria, mas se apegam fervorosamente a crenças que a realidade teima em desmentir. Estado mínimo, por exemplo.
Choque de gestão
• Significa cortar salários, promover demissões em massa e diminuir o investimento público, com base na teoria de que Estado mínimo é Estado eficiente. Faz muito sucesso entre aqueles que não sofrem os seus efeitos imediatos. No choque de gestão não cabem as migalhas assistencialistas do Bolsa Família, um jeito de perpetuar a miséria, não de reduzi-la, conforme a tese. Recomenda-se, porém, não ser explícito. Melhor dizer que os programas sociais “serão aperfeiçoados”.
Crises e bonanças internacionais
• As crises servem de justificativa para governos amigos. Se uma administração aliada vai mal, a culpa é do cenário externo. Inverte-se a lógica no caso dos adversários. Se a gestão inimiga vai bem, as condições internacionais a favoreceram. Caso se saia mal, é resultado exclusivo da incompetência de quem está no poder, que mente descaradamente ao evocar os efeitos deletérios globais, mesmo quando se trata da maior debacle planetária desde o início do século XX.
Coligações e governabilidade
• Seu partido, no poder ou quando em disputa eleitoral, consegue seduzir legendas de aluguel para uma teia de alianças convenientes para garantir a governabilidade ou engrossar o tempo no horário eleitoral gratuito? Parabéns, você é uma figura de aguda sensibilidade política, negociador de fino trato. Seu adversário fez o mesmo? Denuncie a falta de escrúpulos, a atroz barganha de princípios por conveniências, da honradez pela ambição. Conte sempre com os amigos na mídia para corroborar a sua tese. Aquele seu ex-ministro do PMDB que era honrado, mas mudou de lado, será descrito como um homem desprezível.
Corrupção
• Prática entranhada nos governos... dos outros. Infelizmente, a corrupção às vezes ganha fatos comprovados e nomes ilustres de aliados seus. Mas não se preocupe. Vale o mesmo do item Coligações. A mídia amiga estará a postos para jogar esse tipo de acusação, obviamente gratuita e injusta, para debaixo do tapete. Há corruptos e corruptos. Aqueles do partido adversário expõem uma maquinação coletiva, um assalto aos cofres públicos, uma quadrilha organizada e perene, destino manifesto da tal legenda e da administração partidária. Os seus representam casos isolados, sem nenhuma relação com as práticas e princípios de sua agremiação. Também vale dizer que a corrupção desenfreada dos adversários é um mal tão grande que afeta até gente da sua base. É a tal falta de exemplo “de cima”.
Corruptores
• Sem eles não existe corrupção. Como alguns podem eventualmente (ou frequentemente) financiar candidaturas amigas, melhor esquecer o assunto.
Delação premiada
• Ela só tem valor se for vazada cirurgicamente para atingir os nossos concorrentes. Se, no meio do lamaçal, surgir o nome de um aliado, diga que as revelações são açodadas e precisam ser apuradas a fundo, doa a quem doer. Quanto ao fato de o vazamento ser também um crime, de responsabilidade, inclusive, do ministro da Justiça, caso envolva a Polícia Federal, bem… esqueça.
Deus
Entidade abstrata, costuma irromper muito concretamente na cena política em anos eleitorais. Todo mundo simula acreditar em Deus, em especial quem não crê. A história da humanidade mostra, porém, que piores costumam ser aqueles que acreditam. Relegar a fixação da meta de inflação e a taxa de juros às interpretações de um I Ching errático que tenha na Bíblia uma plataforma não parece combinar com as práticas de um Estado leigo e não confessional. Bíblia na qual se confia cegamente, mesmo quando se afronta o conhecimento adquirido pelos seres humanos ao longo dos tempos. Ela é sempre propícia a uma leitura seletiva, que permite pular os versículos sobre os fariseus.
Dossiês
• Se a mídia está do seu lado, fique tranquilo. O esforço de reportagem visará descobrir quem produziu dossiês caluniosos contra você e os seus. Editoriais e colunistas vão denunciar as “baixarias” de campanha (ver o próximo item). Não importa se o dossiê não é um dossiê, mas denúncias comprovadas e comprováveis. Mas, se a imprensa te enxergar como inimigo, se cuide. Tudo poderá ser usado contra você, de declarações sem lastro de notórios bandidos a contas falsas no exterior ou fichas “frias” na polícia.
Liberdade de expressão
• É o direito inapelável, intocável, irreversível dos meios de comunicação de exprimir o pensamento único de seus proprietários, em consonância com seus interesses pecuniários e sua pauta eleitoral. É facultado o direito de mentir e distorcer. Em temporadas eleitorais, a toada de uma nota só torna-se uma obsessão, de forma a impedir que vaze para o noticiário algum acorde dissonante por parte da ralé das redações ou dos candidatos do outro lado. Quando os adversários pretendem exercer, eles também, a liberdade de expressão, valem-se de um eufemismo: quem responde a seus desmandos defende a censura.
Marqueteiros
• Se um adversário sobe nas pesquisas de intenção de voto, é hora de atribuir o preocupante sucesso à ação mistificadora dos marqueteiros. Vale dizer, eles são capazes de botar em pé um pacote vazio de ideias e até eventualmente eleger “um poste”. Nesse caso, não convém lembrar que o seu candidato igualmente possui um exército de experts em bruxarias político-eleitorais, pois isso comprometeria o argumento de que o candidato, aquele que você e a imprensa do privilégio apoiam, apenas expõe suas ideias reais, é de uma espontaneidade radical e nunca se deixaria manipular por técnicas artificiais de persuasão ou pela maquiagem mercadológica. Os adversários, estes sim, fazem o que for preciso para chegar ao poder, ou para mantê-lo (verbete Alternância de Poder). Você e os seus nunca participam de uma eleição para ganhar, mas em nome de um bem maior. Mensagens subliminares são a maior especialidade dos inimigos. Uma doutora em semi-óptica, perdão, semiótica, alerta a respeito das novas ciclovias, traçadas pelo prefeito inimigo de São Paulo, para “o efeito das cores sobre o nosso sistema nervoso central” e sugere que a cor escolhida “não passa de uma descarada propaganda vermelha do PT”. Em todo o mundo, as faixas para bicicletas costumam ser vermelhas, mas não importa.
Medidas eleitoreiras
• Há eleições no Brasil de dois em dois anos. Em ano eleitoral, as ações de um adversário não passam de “medidas eleitoreiras”. As suas são decisões de um governante comprometido com suas funções. Medida eleitoreira é, portanto, uma decisão tomada para aparentemente melhorar a vida do eleitor, não piorá-la, mas, como quem administra o benefício é um adversário, você insiste: embora benéfica, a decisão só busca o voto. Não seria o caso de se aprovar uma lei para impedir um governante de tomar qualquer decisão em ano eleitoral? Ver também o verbete Bolivariano.
Opinião pública
• Entidade espectral, de contornos indefinidos, da qual a minoria oligárquica se apropria, dizendo-se sua porta-voz, por mais que essa minoria não tenha a menor intenção de representar uma vontade coletiva, apenas o seu próprio interesse, e no fundo até nutra profundo desprezo por essa mesma opinião pública. Getúlio Vargas, com aquela sua sintonia com o verdadeiramente popular, disse: “Sinto engulhos quando ouço a Federação das Indústrias falar em nome do povo”. Os industriais cederam lugar para a mídia.
Serviços públicos
• Em junho de 2013, o Brasil levantou-se e saiu às ruas para protestar, a partir do estopim do aumento da tarifa do transporte coletivo, contra as mazelas do serviço público prestado nas áreas da saúde, educação, transporte e segurança. Culpou-se “o governo”. A mídia partidária leu “governo federal”. No momento em que a explosão espontânea concluiu que todos os poderes mereciam ser devidamente cobrados e que a péssima qualidade dos serviços privados (telefonia, bancos etc.) também passou a ser contestada, os meios de comunicação passaram a dizer que os protestos tinham “perdido o foco” e sido capturados por “vândalos” e “baderneiros”.
Velha política
• Só os adversários a praticam. Pera aí, você não está aliado ou aliada àquele oligarca sulista ou ao barítono piauiense defensor de pobres banqueiros? São eles que me apoiam, não o contrário, dirá. Resposta alternativa: a pureza de seus princípios automaticamente os transformará em “homens de bem”. Para governar (ver o item Governabilidade) não será necessário atender aos pedidos pragmáticos e não programáticos de sua base? A distribuição de cargos se baseará em critérios republicanos, retrucará (ler também Aparelhamento do Estado). Mas você não abandonou velhas bandeiras pelo apoio de quem antes você combatia? Você não mudou de lado? Neste momento, chore."
Fonte: CartaCapital
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