13 de novembro de 2011

Leonardo Boff e o Elogio ao Boteco

Frequentar um barzinho arrumado ou ir a um bom restaurante é sempre uma boa pedida nos fins de semana, concordam?
No feriadão ou férias melhor ainda.
Sem maiores preocupações com o dia seguinte.
Chopp, vinho, comidinhas, tira-gostos bem preparados...
Ar-condicionado, Polo Ralph Lauren, selo de "importado" nas bebidas.
É claro que quanto melhor, mais famoso ou "bem" localizado no final a conta costuma vir bem "salgada". O que não é recomendado nem pelo meu cardiologista nem pelo meu gerente de conta-corrente.
Se bem que a minha pressão é sempre baixa. O que é uma boa. O saldo da minha conta-corrente também é baixo. O que não é uma boa.
A vantagem é que - devido ao meu histórico - me sinto muito bem em um "pé sujo", daqueles que você não fica preocupado na hora de pedir a conta. E que muitas vezes tem uma comida ou tira-gosto caseiro que vai muito bem com um chopp 'estupidamente'...
Bem, estou falando tudo isso não porque seja um grande frequentador de restaurantes chics, pés-limpos ou pés-sujos. Até já fui muito. Atualmente, moderadamente.
Essa apologia toda é porque fiquei agradavelmente surpreso com um texto que li há pouco do grande Leonardo Boff.
Um elogio ao boteco! Do Boff? É claro que é em outro nível. Vindo dele só podia ser.
Detalhe: o texto é dedicado ao ilustríssimo 'pé-de-cana' Jaguar.
Reproduzo abaixo o ótimo artigo.

"Em razão do meu “ciganismo intelectual” falando em muitos lugares e ambientes sobre um sem número de temas que vão da espiritualidade, à responsabilidade socioambiental e até sobre a possibilidade do fim de nossa espécie, os organizadores, por deferência, costumam me convidar para um bom restaurante da cidade. Lógico, guardo a boa tradição franciscana e celebro os pratos com comentários laudatórios. Mas me sobra sempre pequeno amargor na boca, impedindo que o comer seja uma celebração. Lembro que a maioria das pessoas amigas não podem desfrutar destas comidas e especialmente os milhões e milhões de famintos do mundo. Parece-me que lhes estou roubando a comida da boca. Como celebrar a generosidade dos amigos e da Mãe Terra, se, nas palavras de Gandhi,”a fome é um insulto e a forma de violência mais assassina que existe?”

É neste contexto que me vem à mente como consolo os botecos. Gosto de freqüentá-los, pois aí posso comer sem má consciência. Eles se encontram em todo mundo, também nas comunidades pobres nas quais, por anos, trabalhei. Ai se vive uma real democracia: o boteco ou o pé sujo (o boteco de pessoas com menos poder aquisitivo) acolhe todo mundo. Pode-se encontrar lá tomando seu chope um professor universitário ao lado de um peão da construção civil, um ator de teatro na mesa com um malandro, até com um bêbado tomando seu traguinho. É só chegar, ir sentando e logo gritar: “me traga um chope estupidamente gelado”.

O boteco é mais que seu visual, com azulejos de cores fortes, com o santo protetor na parede, geralmente um Santo Antônio com o Menino Jesus, o símbolo do time de estimação e as propagandas coloridas de bebidas. O boteco é um estado de espírito, o lugar do encontro com os amigos e os vizinhos, da conversa fiada, da discussão sobre o último jogo de futebol, dos comentários da novela preferida, da crítica aos políticos e dos palavrões bem merecidos contra os corruptos. Todos logo se enturmam num espírito comunitário em estado nascente. Aqui ninguém é rico ou pobre. É simplesmente gente que se expressa como gente, usando a gíria popular. Há muito humor, piadas e bravatas. Às vezes, como em Minas, se improvisa até uma cantoria que alguém acompanha ao violão.

Ninguém repara nas condições gerais do balcão ou das mesinhas. O importante é que o copo esteja bem lavado e sem gordura senão estraga o colarinho cremoso do chope que deve ter uns três dedos. Ninguém se incomoda com o chão e o estado do banheiro.

Os nomes dos botecos são os mais diversos, dependendo da região do pais. Pode ser a Adega da Velha, o Bar do Sacha, o boteco do Seo Gomes, o Bar do Giba, o Botequim do Jóia, o Pavão Azul, a Confraria do Bode Cheiroso, a Casa Cheia e outros. Belo Horizonte é a cidade que mais botecos possui, realizando até, cada ano, um concurso da melhor comida de boteco.

Os pratos também são variados, geralmente, elaborados a partir de receitas caseiras e regionais: a carne de sol do Nordeste, a carne de porco e o tutu de Minas. Os nomes são ingeniosos:” mexidoido chapado”, “porconóbis de sabugosa”, “costela de Adão” (costelinha de porco com mandioca), “torresminho de barriga”. Há um prato que aprecio sobremaneira, oferecido no Mercado Central de Belo Horizonte e que foi premiado num dos concursos:”bife de fígado acebolado com jiló”. Se depender de mim, este prato deverá constar no menu do banquete do Reino dos céus que o Pai celeste vai oferecer aos benaventurados.

Se bem repararmos, o boteco desempenha uma função cidadã: dá aos freqüentadores especialmente aos mais assíduos, o sentimento de pertença à cidade ou ao bairro. Não havendo outros lugares de entretenimento e de lazer, permite que as pessoas se encontrem, esqueçam seu status social e vivam uma igualdade, geralmente, negada no cotidiano.

Para mim o boteco é uma metáfora da comensalidade sonhada por Jesus, lugar onde todos podem sentar à mesa e celebrar o convívio fraterno e fazer do comer, uma comunhão. E para mim, é o lugar onde posso comer sem má consciência.

Dedico este texto ao cartunista e amigo Jaguar que aprecia botecos."


4 comentários:

Anônimo disse...

"A humanidade está a dois drinks a menos"

Marcos Oliveira disse...

"Escrito e ilustrado por ninguém menos que Jaguar, este livro não é um guia convencional de bares. CONFESSO QUE BEBI: MEMÓRIAS DE UM AMNÉSICO ALCÓOLICO foi produzido a partir de lembranças de fatos e de conversas jogadas fora em torno de rodelas de chope, copos e garrafas, que sempre balizaram a vida do chargista, desde anos tão verdes quanto licor de menta. CONFESSO QUE BEBI é também um guia cultural de um Rio de Janeiro que insiste em manter a aura de boêmia, mesmo com todos os problemas socioeconômicos.

Um schnitt com muita pressão e um underberg. Como qualquer grande bebedor sabe, este é um bom começo, portanto a abertura preferida de Jaguar em suas jornadas de bar em bar. CONFESSO QUE BEBI é uma espécie de roteiro afetivo dos bares da cidade, de casas chiques a simpáticos pés-sujos, mas, sendo Jaguar quem é, pode ser visto também como uma autobiografia: afinal, foi nestes ambientes que o autor passou grande parte de sua vida.

Jaguar é um profissional. Tem muita gente que só conhece o du-du de ouvir falar. Jaguar não: é amigo íntimo. Freqüentou lugares como o Cabaré dos Bandidos, em Caxias, o Poleiro dos Galetos, o Bunda de Fora original e vários homônimos, botequins da Central do Brasil, clássicos como a Fiorentina 1, o Paladino, o Bar Luiz, o Adônis, o Bracarense, o Petisco da Vila. Tem quase tanto tempo de casa no Bar Brasil quanto o mais velho dos garçons.

Como o bom bebedor não bebe só, CONFESSO QUE BEBI é também uma crônica que tem como personagens boa parte da arte e cultura cariocas. Pois Jaguar, envelhecido em barris de várias procedências, bebeu com gente como Madame Satã, Hugo Carvana, Tom Jobim, Paulo César Peréio, José Lewgoy, Paulo Casé, João Ubaldo, Nássara, João do Vale, Antonio Pedro, Carlinhos de Oliveira, Paulo Mendes Campos, Lúcio Rangel, Roniquito, Nelson Cavaquinho e Carlinhos Niemeyer. Todos eles concorrentes de peso.

O roteiro que Jaguar propõe começa na Gávea, passa pelo Leblon, por Ipanema, Copacabana, centro da cidade, chega a Vila Isabel e Maria da Graça, para depois esticar em Corrêas, Itaipava, Parati e até mesmo São Paulo, onde ele conseguiu encontrar na Freguesia do Ó um colecionador das melhores cervejas importadas e fez o cardápio do consulado carioca em São Paulo, o bar Pirajá. Amnésico alcoólico de ótima memória e texto calibrado, Jaguar é a prova de que o fígado é antes de tudo um forte, felizmente o mais resistente de nossos órgãos. A saideira, e passa a régua." (da editôra)

Marcos Oliveira disse...

Anônimo: muito boa a lembrança dessa frase que é do ator Humphrey Bogart. Apenas um ajuste. A frase é: "A Humanidade está três drinques atrasada".
Abraço.

Marcos Oliveira disse...

Já o livro do humorista, escritor, desenhista, etc. Jaguar (editado em 2001 mas que ainda pode ser encontrado nas livrarias)teve o seu gaiato título retirado do livro "Confesso que Vivi", relato autobiográfico do poeta e escritor chileno (ganhador do prêmio Nobel) Pablo Neruda.